Desde o início da pandemia, diversos contribuintes buscaram o Judiciário como forma de obter um resguarde jurisdicional para tentar manter o desenvolvimento de suas atividades, haja vista a necessidade do isolamento social como forma de combate ao Coronavírus.
Com efeito, o empresário se viu em uma posição de manter o seu negócio, com uma queda significativa de suas receitas, e, ao mesmo tempo, assegurar o cumprimento, em especial, das despesas correntes (folha salarial, aluguel, luz, água etc.).
Neste contexto, se verificou um número significativo de pessoas jurídicas ingressando com medidas judiciais, visando assegurar a observância de prerrogativas que (supostamente) lhe seriam de direto, as quais teriam como principal fim o alívio financeiro.
Parcela das referidas demandas envolvem discussões da seara tributária. Entre os temas de maior recorrência, estão: (i) diferimento de tributos; (ii) troca de depósito judicial por seguro garantia/fiança bancária.
Com base nesta perspectiva, de que os contribuintes buscaram a tutela jurisdicional objetivando uma segurança de caixa, é que se levanta o seguinte questionamento: qual seria o alcance do “interesse coletivo” em demandas tributárias? Além disso, poderia o Judiciário proferir decisões na seara tributária exclusivamente com base neste princípio?
Para que se possa iniciar referida análise é necessário dar alguns passos para trás.
Quando se trata de demandas tributárias, salvo raríssimas exceções, o pano de fundo da discussão envolve direta ou indiretamente a exigência de um tributo: ou seja, a matéria impactará o caixa da pessoa jurídica, aumentando ou diminuindo referida conta contábil, a depender daquilo que for decidido pelo julgador.
Outrossim, pode ser aferido que, sob a ótica fiscal, demandas judiciais envolvem, por sua natureza, valores monetários e “políticas fiscais”, na medida em que o entendimento a ser proferido pelo Poder Judiciário impactará diretamente na arrecadação do ente tributante.
Diante disso, no caso de o sujeito passivo apresentar fundamentos jurídicos que evidenciem o seu direito, por exemplo, à postergação de um tributo ou a troca da garantia apresentada (exemplificativamente, troca do depósito pelo seguro-garantia), caberia ao Judiciário avaliar o pleito com base neste direito, de forma casuística e fática, e não a partir do suposto entendimento de que a matéria comprometeria a implementação de políticas econômicas, por interferir em ingressos financeiros do ente responsável pela arrecadação dos valores.
Isto porque referida alegação se contradiria com o pano de fundo de qualquer discussão da seara tributária, pois, como dito, quase todas envolvem direta ou indiretamente cobrança de tributos.
Com efeito, quando se trata de matéria tributária, o Judiciário deve enfrentar o tema sob a ótica jurídica, julgando a matéria envolvida na demanda a partir de preceitos normativos e devidamente positivados.
Caso contrário, poderia abrir um espaço nebuloso, que possibilitaria a tutela jurisdicional ser tomada a partir de preceitos exclusivamente políticos (e não jurídicos), sob a premissa de se estar observando “interesses coletivos”, o que dissociaria das bases fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Dito isso, retomando ao cenário atual de pandemia, qual seria o entendimento a ser adotado na hipótese de um contribuinte inserido na sistemática do Lucro Presumido buscar o diferimento do IRPJ e da CSLL, a partir da aplicação: (i) do princípio da igualdade (artigo 150, II, CF/88) entre ele e o contribuinte no Simples Nacional[1]; (ii) da Portaria MF nº 12/2012?
Seja ele favorável ou não à pessoa jurídica, a ótica envolvida na decisão deveria guardar correlação ao arcabouço normativo acerca (i) do suposto desrespeito ao princípio da igualdade; (ii) da possibilidade de aplicação da Portaria MF nº 12/2012 ao caso concreto. Somado a isso, deveria se analisar, casuisticamente, a situação financeira e social enfrentada por cada contribuinte – não os levando à vala comum.
Parece óbvio, mas, contudo, o que se vê em determinados casos práticos, é uma manifestação jurisdicional pautada, exclusivamente, na suposta observância de “interesses coletivos” que mais tomam como base aspectos políticos e que desrespeitam o Princípio da Separação de Poderes (uma vez o racional alegado em referidas decisões demonstra certa discricionariedade característica do Poder Executivo, não do Judiciário – de guardião e aplicador da Lei), haja vista que, no contexto do exemplo demonstrado, a concessão do diferimento tributário ou a troca de garantia impactariam diretamente o caixa dos Entes Federativos.
Referida ratio decidendi é extremamente preocupante por nos levar a uma espécie da denominada “jurisprudência defensiva”, na qual deixa-se de analisar o tema em discussão sob o cenário jurídico apresentado pelas partes, utilizando-se, para tanto, argumentos que não possuem qualquer correlação com as manifestações jurídicas envolvidas na demanda.
A alegação acima fica ainda mais evidente quando se pretende compreender o que seria “interesse coletivo” ou “interesse público”, pois, para manter referida fundamentação, seria necessário o responsável pela sua invocação demonstrar, de início, os fundamentos econômicos, sociais, contábeis, coletivos, etc., que amparariam o seu entendimento e, posteriormente, realizar a sua correlação jurídica de “interesse coletivo”.
Fato que está bem longe de ser visto nas decisões proferidas, que se utilizam de referido conceito de forma extremamente subjetiva e pouco fundamentada em concepções do direito público.
Neste sentido, suscitar, por exemplo, que a troca de garantia (de depósito judicial para seguro garantia/fiança bancária) não seria possível, por razões exclusivamente de “interesse coletivo”, chega a ser incompreensível, superficial, contraditório e indevido.
Isto porque, a partir do “interesse coletivo” utilizado nas referidas decisões, poderia se alegar, exemplificativamente, que é de grande relevância para a coletividade que a “propriedade privada” seja assegurada, e que, ao não conceder a troca da garantia, vedando que o contribuinte reforce o seu caixa em época de crise, estaria o Estado (i) violando a função social da empresa e o pleno emprego; e (ii) se apropriando de quantia indevidamente e, com isso, violando o “interesse coletivo”.
Por isso, devem ser evitadas alegações genéricas – do tipo, “violação ao interesse coletivo” – no direito, e mais especificamente no contexto de matéria tributária, haja vista que a demanda, por envolver a cobrança de tributo, possui interesse coletivo de plano. Assim, cabe ao Poder Judiciário analisar o pleito das partes litigantes sob a ordem fática de cada contribuinte, tendo em vista que todos enfrentam, atualmente, algum tipo de indisposição por causa da pandemia específica do seu negócio.
Diante do exposto, deve-se ter em mente que as discussões tributárias envolvem, por si, aspectos econômicos, que influenciarão o caixa do sujeito (ativo e passivo) da relação jurídico-tributária, mas, contudo, a ratio decidendi do Judiciário deve estar pautada em preceitos jurídicos envolvidos na situação fática apresentada pelas partes, e não em uma espécie de “saída à francesa”, sob o risco de frustrar o acesso à justiça pelos contribuintes nos momentos mais complicados para o desenvolvimento de sua atividade.
[1] Sem qualquer fundamentação técnica, foi concedido, aos contribuintes inseridos no Simples Nacional, a possibilidade de diferirem o pagamento de seus tributos federais por causa da pandemia (Resoluções CGSN nº 152/2020 e nº 154/2020).