Por Bruno Chatack Marins e Júlia Ramos Silva
Por muitos anos, a exigência contida no artigo 57 da Lei n.º 11.101/2005, que determina a apresentação de Certidões Negativas de Débitos Tributários pelas empresas em processo de recuperação judicial, era relativizada. Essa obrigação era dispensada por ser considerada incompatível com os objetivos do instituto da recuperação judicial, uma vez que a maior parte das empresas que recorrem a este processo não se encontra em situação de regularidade fiscal, visto que o passivo tributário costumar ser um dos maiores responsáveis pela crise econômico-financeira enfrentada por essas empresas.
A posição de dispensa das certidões negativas, há muito tempo adotada pela doutrina e jurisprudência, fundamentava-se no fato de que inexistiam condições legais e específicas para regulamentar as formas de parcelamentos e transações para a regularização fiscal das empresas. Apenas a Lei Federal n.º 10.522/2002, em seu artigo 10, previa a possibilidade de parcelamento dos débitos tributários, a exclusivo critério do Fisco e pelo prazo máximo de 60 (sessenta) parcelas mensais.
Tal circunstância tornava inviável a reestruturação das empresas, tendo em vista tratar-se de um prazo muito curto e sem condições atrativas que viabilizassem o cumprimento dessa obrigação legal, não beneficiando as empresas em recuperação judicial. O Poder Legislativo buscou alterar esse cenário no ano de 2014, com a edição da Lei n.º 13.043/2014, inserindo o artigo 10-A à Lei n.º 10.522/2002, que prevê o parcelamento do débito tributário com a Fazenda Nacional, em 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais.
No entanto, referido prazo também foi considerado exíguo pela jurisprudência, uma vez que não trouxe benefícios efetivos e específicos às empresas em crise econômico-financeira. Essa circunstância consolidou a jurisprudência no sentido de dispensar a apresentação das certidões negativas de débitos tributários, pois entendia-se que exigir das empresas a regularização do passivo tributário, sempre elevado, para a homologação do Plano e a concessão da recuperação judicial, significaria anular as chances de sobrevivência das empresas.
Ocorre que, tal cenário passou por alterações com o advento da Lei n.º 14.112/2020, a qual entrou em vigor em janeiro de 2021. A nova legislação promoveu relevantes alterações às Leis n.º 11.101/2005 e 10.522/2002, introduzindo condições para o equacionamento do passivo tributário das empresas em recuperação judicial, a exemplo de: (i) autorização de parcelamento de dívidas em até 120 (cento e vinte) meses (artigo 10-A, inciso V); (ii) possibilidade de liquidação de até 30% (trinta por cento) da dívida consolidada no parcelamento com a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da Contribuição Social do Lucro Líquido (CSLL) ou com outros créditos próprios (Lei n.º 10.522/2002, artigo 10-A inciso VI); e (iii) possibilidade de transação com o Fisco (Lei n.º 10.522/2002, artigo 10-C).
Essas alterações promoveram uma mudança no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No recente caso julgado pela 3ª Turma do STJ[1], se fixou a tese de que não é mais possível dispensar a apresentação das certidões negativas de débitos fiscais para a concessão da recuperação judicial, pois as condições implementadas pela Lei n.º 14.112/2020 não prejudicam a efetividade do processo. Para o Ministro Relator, Marco Aurélio Bellizze, a nova legislação possibilitou o equilíbrio entre a recuperação das empresas e o cumprimento das obrigações tributárias, que não se submetem à recuperação judicial.
Nesse contexto, o Ministro resume que: “(…) a equalização do débito fiscal de empresa em recuperação judicial, por meio dos instrumentos de negociação de débitos inscritos em dívida ativa da União estabelecidos em lei, cujo cumprimento deve se dar no prazo de 10 (dez) anos (se não ideal, não destoa dos parâmetros da razoabilidade), apresenta-se – além de necessária – passível de ser implementada. (…) Diante dos termos estabelecidos pela Lei 14.112/2020, segundo penso, não é (mais) dado ao Juízo da recuperação, com amparo, simplesmente, na norma principiológica contida no artigo 47 da LRF, dispensar a comprovação de regularidade fiscal, exigida, expressamente, pelo artigo 57 do mesmo diploma legal”.
O Ministro esclarece, ainda, que essa posição se limita ao âmbito federal, uma vez que a lei que trouxe condições de adesão a um programa de parcelamento tributário, permitindo a aplicação do artigo 57 da Lei n.º 11.101/2005, é federal. Dessa maneira, o STJ entendeu que a exigência da regularidade fiscal das devedoras com o Fisco estadual e municipal, para a concessão da recuperação judicial, dependerá da criação de leis especificas em cada ente, que estabeleçam condições aptas para programas de parcelamento do passivo tributário das empresas.
Em contrapartida, o STJ firmou o posicionamento de que na hipótese de descumprimento da exigência de apresentação das certidões de regularização fiscal, as devedoras não terão como consequência a convolação do processo de recuperação judicial em falência. Ao contrário do que os tribunais estaduais vinham decidindo, a não apresentação das certidões negativas de débitos tributários, implica tão somente na suspensão do processo recuperacional até a efetivação da medida, sem prejuízo da retomada das execuções individuais e pedidos de falência em face das devedoras. Isso porque, a Lei n.º 14.112/2020 trouxe como hipótese de convolação em falência, apenas o descumprimento do parcelamento com o Fisco, inserindo o inciso V ao artigo 73 da Lei n.º 11.101/2005.
Na prática, as alterações promovidas pela legislação, de fato visam o reequilíbrio das obrigações tributárias das empresas em recuperação judicial. No entanto, a depender das dificuldades das devedoras e do estágio em que se encontra a dívida tributária com o ente público, caberá uma análise do caso concreto. Apesar de as condições previstas auxiliarem no cumprimento das obrigações com o Fisco, é possível que estas nem sempre sejam suficientes para algumas empresas, as quais costumam acumular um elevado passivo tributário, tornando-se o Fisco o seu principal credor.
Pelo exposto, fica clara a verdadeira inovação no ordenamento jurídico brasileiro, que coloca o Fisco em um papel de fundamental importância para o sucesso de uma recuperação judicial, na medida em que as empresas necessitam comprovar a sua regularidade fiscal para prosseguirem com o processo. Com o novo posicionamento adotado pelo STJ, percebe-se que as alterações à legislação recuperacional, surgiram na tentativa de preservar o interesse público, tendo em vista que os créditos tributários não se submetem à recuperação judicial. Além disso, buscam permitir que empresas em situação financeira tão complicada não sejam impedidas de usufruir dessa ferramenta jurídica, voltada a preservação da atividade empresarial, devido à ausência dessa regularidade fiscal.
Como última ressalva, importante destacar que determinadas situações que fujam do escopo da lei e da jurisprudência, demonstrando que as empresas não estão aptas a aderir as condições de parcelamento e transação com o Fisco, devem ser analisadas caso a caso e, principalmente, à luz do princípio da preservação das empresas, o qual intrinsecamente deve nortear as decisões no âmbito das recuperações judiciais.
*Bruno Chatack Marins é sócio do Chatack, Faiwichow & Faria Advogados, especialista em Reestruturação de Dívidas, Direito Empresarial e Agronegócio.
*Júlia Ramos Silva é advogada do Chatack, Faiwichow & Faria Advogados e membro da Women In Law Mentoring Brazil.
Artigo originalmente publicado em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/o-novo-papel-do-fisco-nas-homologacoes-dos-planos-de-recuperacao-judicial/